Resenha: Chamou
imediatamente a atenção e pareceu até
um pouco estranho à primeira vista que os músicos,
chegados ao palco, se tivessem posicionado fisicamente tão
próximos, bateria, contrabaixo e sopros quase encostados
uns aos outros. Não é muito comum que isso aconteça,
descontadas as situações em que a exiguidade
do espaço assim o exige.
Não era este o caso, porque amplo
é o espaço útil do auditório do
conimbricence Centro Norton de Matos. E a imagem dos músicos
assim dispostos em cena, acabou por funcionar como metáfora
visual do que realmente aconteceu em palco: o trio do saxofonista
alto e clarinetista Frode Gjerstad, com Oyvind Storesund,
contrabaixo, e Paal Nilssen?Love, bateria, funcionou do princípio
ao fim como um todo, tal o nível de coesão que
demonstrou.
Há males que vêm por bem: desmembrada
a sua Circulasione Totale Orchestra, banda que se veio a revelar
financeiramente desastrosa não obstante as gravações
de grande nível que realizou para a editora norte-americana
Cadence, Frode acabou por se ver forçado a trabalhar
com um tipo de formação mais pequena, capaz
de enfrentar as dificuldades por que passam os músicos
de free jazz em qualquer parte do mundo, incluindo a rica
e culta Noruega. Desta forma nasceu a ideia de explorar extensiva
e profundamente as inúmeras possibilidades da arte
do trio.
Depois de ter corrido mundo com os trotters
William Parker e Hamid Drake, e de, antes disso, ter integrado
o famoso trio Detail, com John Stevens e Johnny Dyani, desde
há alguns anos que o saxofonista nórdico tem
vindo a assumir a liderança deste novo trio 100% norueguês.
Uma máquina fluida, complexa e robusta, conjuntamente
propulsionada pelo contrabaixo exuberante de Storesund, que
vive tanto da forte marcação rítmica,
como dos efeitos encantatórios induzidos pelo arco,
e pelo percutir impressionante de Nilssen?Love, um dos grandes
bateristas da cena actual.
Gjerstad é um veterano da improvisação
total. Ou seja, pratica habitualmente uma música não
idiomática, de energia extasiante, amplo espectro dinâmico,
com marcação poli-rítmica vertiginosa
e uma sonoridade multidimensional profundamente enraizada
nos referentes do free jazz e da livre improvisação
acústica de matriz europeia.
Construído a partir de longas peças
musicais de criação espontânea, o discurso
musical do trio evoluiu, ora num diálogo caleidoscópico
a três vozes distintas, ora convergindo numa sonoridade
colectiva de caudal imparável, espiritualmente rica
e com uma intensidade próxima do paroxismo.
Se a isto se somar o interesse de um público
não muito numeroso mas entusiástico –
notoriamente ávido de uma música que escape
às rotinas pop e jazz habituais, e que seja capaz de
colocar desafios interessantes e renovados a cada movimento
– tudo se conjugou para que na grande noite de Coimbra
o trio tivesse dado um concerto portentoso.
Som, energia, liberdade, potência,
velocidade e articulação em perfeita harmonia
– as chaves do sucesso deste fenómeno de empatia
interna e externa, que confirmou ao vivo o que em disco resultara
igualmente brilhante. Ouça-se The Blessing Light: For
John Stevens (Cadence), pelo mesmo trio que veio até
nós, e ter-se-á uma ideia aproximada da avalanche
sonora que tomou conta de Coimbra e das almas de que se quiseram
abrir ao maravilhoso mundo da música improvisada.
O que aconteceu desta vez no “Jazz
ao Centro – Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra
- 2003”, está ao nível da excelência
e resultou num dos melhores concertos do ano que corre.
Para o mês que vem, a 6 de Dezembro,
segundo o Programa, encerra o Jazz ao Centro com o muito aguardado
quarteto de free jazz, MUJICIAN. Será a oportunidade
de ver ao vivo e em longa metragem o que há dois anos
Paul Dunmall, Keith Tippett, Paul Rogers e Tony Levin, deixaram
entrever num pedacinho tocado no Jazz em Agosto, na Fundação
Gulbenkian, em Lisboa. Será certamente o que se chama
fechar com chave de ouro, porque é tremendamente rica
a prestação destes quatro monstros das ilhas
britânicas. Que não haja ausências por
falta de aviso.
Eduardo Jorge
Chagas